O professor da Universidade da Califórnia questiona o processo de escolha dos vencedores nas categorias científicas e entende que o reconhecimento deveria ser dado a grupos de pesquisa, e não para cientistas de forma individual. O astrofísico, que também é autor do livro Losing The Nobel Prize (“Perdendo o Prêmio Nobel”, sem versão em português), conversou com a BBC Mundo
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“Nenhum cientista vai a Estocolmo sozinho”, escreveu Brian Keating, professor de física da Universidade da Califórnia, em San Diego, nos Estados Unidos.
“Dar prêmios Nobel a cientistas de forma individual é um anacronismo”, escreveu o pesquisador no ensaio Time to Update the Nobel (“Hora de Atualizar o Nobel”, em tradução livre para o português) publicado em 2019 no site Aeon.
O físico questiona o processo de escolha dos vencedores das categorias científicas (física, química e medicina) do prestigiado reconhecimento que é anunciado todos os anos no início de outubro.
E ele não está sozinho. Em 2012, Jim Al-Khalili, físico teórico e professor da Universidade de Surrey, no Reino Unido, escreveu outro artigo, intitulado “Por que os Prêmios Nobel Precisam de uma Reformulação” no jornal The Guardian.
O autor apontou como, cada vez mais, as fronteiras entre as ciências estão se confundindo e que os prêmios também deveriam “recompensar as melhores pesquisas” e não ser classificados de acordo com algumas disciplinas.
“O comitê poderia introduzir novas categorias e variá-las anualmente. Pode haver um ano em que astrobiologia, ciência dos materiais e geofísica sejam escolhidas, e outro em que eles selecionem nanoquímica, inteligência artificial e biologia quântica”, sugeriu Al-Khalili.
As críticas também apontam para a falta de diversidade entre os vencedores. Em 119 anos de história, apenas 23 mulheres ganharam o prêmio nos ramos científicos: 4 em física (entre 216 laureados), 7 em química (entre 186) e 12 em medicina (entre 222).
“Nenhum cientista negro jamais ganhou um Nobel. Isso é ruim para a ciência e para a sociedade”, escreveu em 2018 o pesquisador Winston Morgan, professor de toxicologia clínica e bioquímica da Universidade East London, no Reino Unido, no site The Conversation.
Como são escolhidos os vencedores?
Em 2019, a revista Nature publicou uma declaração intitulada “Comitê do Nobel Responde às Críticas”.
“Nosso processo de premiação se esforça para garantir que todos os cientistas tenham uma chance justa, independentemente de sua localização geográfica ou de gênero”, escreveram Göran Hansson, secretário-geral da Academia Real de Ciências da Suécia, e Gunnar Von Heijne, secretário do Comitê do Nobel de Química.
‘Nosso processo de premiação se esforça para garantir que todos os cientistas tenham uma chance justa, independentemente de sua localização geográfica ou gênero’, disse Göran Hansson
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Os processos de nomeação e seleção dos laureados em física e química são muito semelhantes.
No primeiro caso, observa a organização, o Comitê do Nobel de Física (assim como o de Química) envia formulários de nomeação confidenciais “para cerca de 3 mil pessoas: professores selecionados de universidades ao redor do mundo, ganhadores do Nobel e membros da Academia Real de Ciências da Suécia, entre outros.”
Assim que esses formulários são devolvidos, o comitê “analisa as indicações e seleciona os candidatos preliminares”. Entre 250 e 350 nomes são propostos nessa primeira fase.
Os nomes preliminares são enviados “a especialistas especialmente designados” para avaliar o trabalho dos candidatos.
Na sequência, o comitê apresenta recomendações sobre os candidatos finais para a Academia Real de Ciências da Suécia, cujos membros escolhem os vencedores por maioria de votos.
No caso do prêmio de medicina, cabe à Assembleia do Nobel do Instituto Karolinska de Estocolmo (capital da Suécia) escolher os laureados entre os candidatos indicados pelo Comitê do Nobel de Fisiologia ou Medicina.
E esse estágio é alcançado após “mais de 3 mil convites pessoais confidenciais serem enviados para nomeadores qualificados”.
Os estatutos da Fundação Nobel estabelecem que até três pessoas podem compartilhar o reconhecimento por ano — o Prêmio da Paz é o único que pode ser concedido a organizações.
O número limite
Em 2019, Hansson e Von Heijne apontaram que “a distribuição desigual dos prêmios Nobel é sintoma de um problema maior”.
“A ciência foi dominada pela Europa Ocidental e pela América do Norte durante séculos, e as mulheres tiveram oportunidades científicas limitadas.”
No ano passado, o Prêmio Nobel de Física foi concedido ao britânico Roger Penrose, ao alemão Reinhard Genzel e à americana Andrea Ghez por suas descobertas sobre buracos negros
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Keating discorda dessa abordagem.
“Acho que é sobre o comitê ter que fazer pesquisas mais ativas e tomar medidas proativas para ter certeza de que está realmente revelando as pesquisas maiores, mais importantes e mais benéficas, aquelas que realmente ajudarão, como disse Alfred Nobel, a toda a humanidade”, disse o pesquisador à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Ele ressalta que, se tivéssemos mais de três vencedores por ano em cada categoria científica, isso “incluiria mais mulheres e mais pessoas de grupos sem representação”.
Venki Ramakrishnan, vencedor do Nobel de Química de 2009 (junto com Thomas A. Steitz e Ada Yonath), escreveu que “na ciência, descobrir três pessoas que fizeram uma diferença real em um campo específico torna-se cada vez mais difícil e subjetivo, quase impossível.”
“Além disso, a explosão da ciência no último meio século significou que muitos avanços importantes nunca ganharam reconhecimento”, observou ele no livro Gene Machine: The Race to Decipher the Secrets of the Ribosome (A Máquina do Gene: a Corrida para Decifrar os Segredos do Ribossomo, sem versão em português).
Em entrevista à BBC Mundo, Hansson, o secretário-geral da Academia Real de Ciências da Suécia, disse que a discussão sobre a premiação de grupos ou de organizações inteiras em categorias científicas tem ocorrido não apenas na imprensa, mas também “na Academia” e ele acredita que o debate continuará no futuro.
“Até agora, descobrimos que é possível reconhecer uma, duas ou três pessoas por uma descoberta específica, e eu pessoalmente acredito que, se você pode recompensar um indivíduo, você mostra que uma pessoa faz a diferença neste mundo de organizações e instituições.”
Em sua opinião, destacar o “indivíduo criativo” e torná-lo um modelo pode ser mais positivo do que recompensar uma organização.
Até o professor Keating, da Universidade da Califórnia, reconhece que os prêmios levam os cientistas ao sucesso.
“Eu mesmo fiquei um pouco apaixonado pelo Nobel, com o desejo de querer ganhá-lo, de alcançar o mais alto nível de notoriedade e imortalidade que pode ser obtido na física e de fazer parte de uma coorte muito exclusiva, habitada por pessoas como Einstein”, escreveu, em um artigo para a BBC em 2020.
O astrofísico, que também é autor do livro Losing The Nobel Prize (“Perdendo o Prêmio Nobel”, sem versão em português), conversou com a BBC Mundo. Confira os principais trechos a seguir.
BBC Mundo – Por que você acha anacrônico conceder prêmios Nobel a cientistas de forma individual?
Brian Keating – Porque eles não refletem a forma como a ciência é feita.
A ciência hoje é raramente realizada por gênios solitários, por pessoas que trabalham sozinhas e sem ajuda. Em vez disso, a ciência é muito parecida com uma indústria, em que temos grandes colaborações, ótimas equipes, muitos recursos e suporte.
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Essa combinação e a diversidade da contribuição intelectual não podem vir de uma única pessoa. Precisamos de várias perspectivas.
E nem existe mais a oportunidade de fazer o que consideramos descobertas fáceis de alcançar, ou ampliar demais o número de descobertas que poderiam ter sido feitas por um indivíduo.
É muito raro que, agora, uma pessoa contribua tanto para uma descoberta a ponto de isso pertencer apenas a ela.
BBC Mundo – No seu ponto de vista, qual é o principal problema com o Prêmio Nobel no momento?
Keating – Acho que existem três problemas principais. Um aspecto importante é que não mais do que três pessoas podem ganhar em cada categoria, o que é uma decisão quase caprichosa do comitê. Originalmente, era apenas um vencedor e, embora tenha ocorrido um avanço, isso ainda não reflete como a ciência é feita hoje.
O outro problema é que o prêmio não pode ser destinado a pessoas que morreram, mesmo que se reconheça o quanto elas o mereceriam. Esses indivíduos não são incluídos nos elogios, na atenção e no alarde só porque estão mortos. Em última análise, isso é injusto e o Prêmio Nobel não reflete como a ciência é feita hoje.
O terceiro problema é que as premiações transformam a ciência em uma espécie de esporte, uma cerimônia de premiação para estrelas de cinema, com risco de reescrever como a história realmente se desenrolou.
Desse modo, às vezes falamos sobre as descobertas científicas pelo número de ganhadores do Nobel ou pela forma como essas descobertas levaram a um prêmio desses, em vez de nos concentrarmos nas lutas e no processo para chegar a essa descoberta.
Me parece que há uma tendência a pensar mais no resultado do que no processo em si.
BBC Mundo – Em 2019, o comitê do Nobel indicou que faz “esforços substanciais para alcançar centros de pesquisa em todo o mundo”. Você ainda acredita que “cálculos arbitrários e muitas vezes cruéis” são executados nesse processo de seleção, conforme escreveu num artigo?
Keating – Sim, acho que eles têm interesses. Eu considero que eles não têm uma agenda ou um foco. Isso seria impreciso, e eles podem até admitir que é estranho: três pessoas que estão exatamente na mesma área obtêm o mesmo número de votos? Não parece ser plausível.
O que eu acho que acontece, em geral, é que eles têm uma ideia, dentro da Academia Real de Ciência da Suécia, de quem merece um Prêmio Nobel e, então, tentam encontrar o apoio de nomeadores, como é o meu caso, para apoiar essa narrativa.
Mas, como o processo não é nada transparente e está escondido há pelo menos 50 anos, é impossível para uma pessoa de fora realmente saber o que está acontecendo.
Porém, o fato de não olharem para trás e verificarem o que está errado é cruel.
Quantas pessoas mereciam o prêmio, como Rosalind Franklin (1920-1958) ou Jocelyn Bell (1943), cujos méritos eles próprios reconhecem, e não ganharam?
BBC Mundo – Você acha que os prêmios Nobel em ciência deveriam ser dados a grupos?
Keating – Sim, acredito que quem foi fundamental no processo merece ser reconhecido e recompensado.
Até que os vencedores comecem a se rebelar e até rejeitar o prêmio em seu formato atual, as coisas continuarão como estão, como um monopólio, uma entidade monolítica e imutável.
Na primeira vez que alguém se manifestar e dizer: ‘Não vou aceitar esse prêmio porque não é exato, não é justo e não representa a totalidade da descoberta’, o comitê mudará seus planos.
Meu livro foi escrito na esperança de que isso aconteça, de que alguém veja que isso está afetando negativamente os resultados da ciência. Até agora, ninguém realmente aceitou esse desafio, mas gostaria que alguém tomasse a iniciativa. Com o tempo, imagino que os vencedores serão forçados a isso.
Ou seja, acredito que o Prêmio Nobel vai perder prestígio e, se isso acontecer, não haverá como recupera-lo.
E isso é visto hoje em lugares como Hollywood, onde as mulheres foram reprimidas por muitas décadas, e agora elas vêm à tona e protestam, até com a participação dos homens.
Não estou comparando as duas áreas, mas o mesmo pode acontecer com o Prêmio Nobel se eles não tomarem cuidado. Acho que eles deveriam aproveitar a oportunidade para reformular enquanto ainda têm tempo de fazê-lo em seus próprios termos.
BBC Mundo – Você também mencionou que a imagem do pesquisador solitário parece ser cada vez mais “uma relíquia do passado”. Por que você acha que existe uma imagem idealizada de um ganhador do Nobel?
Keating – Acho que isso remonta à ideia do gênio solitário que as pessoas querem acreditar que existe. Aquele indivíduo que trabalha muito sozinho em algo que nenhum de nós pode fazer.
É uma espécie de fantasia que existam indivíduos assim.
Talvez essa ideia venha de pessoas como Galileu Galilei, Isaac Newton ou Albert Einstein, que trabalhavam predominantemente isolados e sozinhos. Mas todos admitiram que estavam sobre os ombros de gigantes, como chamavam aqueles que atuavam no mesmo campo antes deles.
Acho que perdemos de vista a segunda parte dessa frase: os cientistas, por natureza, têm que trabalhar de forma colaborativa. Hoje, nenhuma pessoa pode construir o Grande Colisor de Hádrons, o Observatório Simons ou qualquer um dos projetos mais cativantes sozinho.
Acho que prejudicamos a ciência quando mandamos a mensagem de que você tem que ser o Einstein para dar uma contribuição. Mesmo o Einstein, quando criança, não era o Einstein que conhecemos. Em outras palavras, ele não sabia de nada e levou anos para desenvolver seu conhecimento, aprender matemática e assim por diante.
Imagine se ele sentisse que tinha que ser um super gênio para ser um cientista. Ele ficaria desanimado quando era jovem e nunca teríamos todas aquelas contribuições.
BBC Mundo – Embora você reconheça que a competição científica para ganhar um Prêmio Nobel possa ser saudável, também acredita que ela pode levar ao desperdício de recursos. O que quer dizer com isso?
Keating – Uma das necessidades mais urgentes da ciência é o financiamento, ter a possibilidade de contratar colaboradores, pesquisadores, poder pagar por experimentos, comprar equipamentos, viagens e assim por diante.
Mesmo agora, com uma pandemia, ainda é urgente poder viajar para o Chile, a Europa e outros lugares onde fazemos nossas pesquisas.
A ciência realmente depende de financiamento, mas os valores estão cada vez menores. Por outro lado, o número de cientistas está aumentando, assim como nosso desejo por novas tecnologias e descobertas científicas.
É assim que você tem cada vez menos recursos e, ao mesmo tempo, mais atenção à área. Isso vai causar um choque.
Os órgãos que decidem o financiamento, como a National Science Foundation, dos Estados Unidos, ou os diversos órgãos governamentais da Europa, vão perguntar qual projeto terá maior impacto, seja um telescópio ou um acelerador de partículas.
E, muitas vezes, o atalho que usam é dizer: isso vai ganhar um Prêmio Nobel? É por esse motivo que os diferentes projetos vencedores do prêmio que eles apoiaram costumam ser vistos nos sites de agências governamentais.
Acho que, novamente, isso perpetua a ideia quase mítica sobre o Prêmio Nobel e dá a ela um excesso de poder.
Isso, penso eu, é outro tipo de consequência da idolatria quase religiosa sobre aqueles que ganham esse reconhecimento.
BBC Mundo – Em seu artigo, você questiona: “E se o Comitê do Nobel divulgasse todos os indicados daquele ano?”. Quais seriam os benefícios disso?
Keating – Acho que, nesse caso, a atenção que seria dada aos cientistas, principalmente aos jovens, destacaria como é importante aquilo que eles estão fazendo.
Não há outra cerimônia de premiação em que não se saiba quem vai concorrer. Nas Olimpíadas, no Oscar, no Emmy ou no Bafta, as pessoas conhecem quem está envolvido, quem são os finalistas. Isso, de certa forma, dá mais atenção àquela comunidade, àquela área.
Por esse motivo, acho que seria bom reconhecer a todos, que potencialmente se consideram merecedores desse prêmio.
BBC Mundo – Em 2017, o jornalista Ed Yong escreveu no The Atlantic, um artigo sobre absurdo dos prêmios Nobel e postulou que “na medida em que propagam o mito do gênio solitário, esse gênio solitário é quase sempre branco e homem”. Como o senhor vê esse ponto de vista?
Keating – Esse é um fenômeno semelhante à perspectiva de Einstein que mencionei antes: as pessoas querem que os cientistas estejam lá e recebam o prêmio.
De certa forma, acho que as pessoas querem que essas figuras existam, para que não tenham que tomar decisões ou fazer as coisas por si mesmas. Em outras palavras, não preciso me debruçar em um tópico importante porque outra pessoa, que é muito mais inteligente do que eu, está pensando sobre a origem do universo ou a estrutura do espaço e do tempo.
E eu acho que, infelizmente, isso é causado pelos próprios cientistas, porque eles vão dizer coisas como: “Não, isso é muito difícil para você entender e eu não posso explicar”, ou como Richard Feynman (Prêmio Nobel de Física de 1965) respondeu: “Se eu pudesse explicar para uma pessoa comum, o Prêmio Nobel não teria nenhum mérito.”
Isso é prejudicial porque, novamente, desencoraja os jovens. Não há cientista tão inteligente ao nascer como quando ele ganhou o Prêmio Nobel.
Você só prejudica a ciência ao fazê-la parecer exclusiva. É verdade que a maioria dos vencedores foram homens brancos, ou pelo menos homens.
Houve muitos cientistas japoneses, chineses e de outras origens que foram laureados. Mas até agora não há nenhum vencedor afro-americano, por exemplo.
Isso é sintoma de um dos fenômenos que descrevo em meu livro: quanto mais vezes você estiver associado a um ganhador do Prêmio Nobel, maior será a probabilidade de você mesmo ganhar um Prêmio Nobel, seja você conselheiro, aluno, colaborador ou apenas autor de um artigo com esse ganhador.
Nesse sentido, o rico tende a ficar rico e há a criação de uma espécie de dinastia no Prêmio Nobel. Me parece que isso pode reforçar o mesmo fenômeno de que Ed Yong fala naquele artigo.
Fonte: G1 Mundo