Jovens afegãos vivem nas ruas da Turquia à espera de visto humanitário do Brasil

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Estrangeiros relatam exigências que dificultam ou inviabilizam concessão de documento. Itamaraty diz que ‘situações são pontuais’; entidades de direitos humanos e DPU apontam ilegalidade.
Afegãos relatam dificuldades para conseguir visto humanitário do Brasil
Quatro jovens afegãos estão morando nas ruas e dormindo em parques de Ancara, capital da Turquia, há quase um mês à espera da liberação do visto humanitário prometido pelo Brasil. Segundo a família, os postos diplomáticos brasileiros de Ancara, na Turquia, e Islamabad, no Paquistão, têm feito uma série de exigências para concessão do documento.
Os solicitantes também relatam demora para terem respostas aos e-mails enviados com dúvidas e prorrogação da emissão de passagem ao Brasil.
“Nós já preenchemos o protocolo de visto humanitário e estamos aguardando há praticamente um mês o retorno da embaixada. Nós imaginamos que seria um processo fácil, diferente dos familiares que estão no Afeganistão, que ainda têm essa questão de chegar a um outro país, no caso o Paquistão, para ter acesso a uma embaixada”, relata a engenheira Magda Amiri, que tenta trazer os quatro sobrinhos afegãos para o Brasil.
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“Todos os dias estou tão preocupado com esta situação. Não sei o que pode acontecer com eles’”, relatou o marido da Magda, Ahmad Jawid Amiri, afegão que está há 7 anos no Brasil.
O Ministério das Relações Exteriores tem sido criticado desde o mês passado por exigências feitas em postos diplomáticos autorizados a conceder o visto. Elas extrapolariam a portaria interministerial emitida pelo governo federal com as regras de concessão de visto humanitário após a tomada do poder pelo Talibã no Afeganistão.
Entre os requisitos estão o teste RT-PCR para a detecção de Covid-19 e a comprovação de que a pessoa terá hospedagem, alimentação, transporte e até plano de saúde e odontológico no Brasil, além de aulas de português.
Na última sexta-feira (31), o Ministério das Relações Exteriores informou que as exigências adicionais para a entrada de afegãos no Brasil eram dirigidas apenas a pedidos formulados por entidades particulares e Organizações Não-Governamentais (ONGs) que patrocinam a vinda de grupos de estrangeiros ao país.
A medida seria uma etapa adicional de segurança, já que, segundo o Ministério das Relações Exteriores, muitos dos pedidos são genéricos e sem dados específicos dos estrangeiros que pedem refúgio.
Mas a apuração da GloboNews mostra que, mesmo para grupos pequenos ou pedidos individuais, algumas exigências continuam sendo feitas, como a solicitação de visto oficial no Paquistão como condição prévia para a análise do pedido de visto humanitário concedido a afegãos pelo Brasil por meio da embaixada em Islamabad, no Paquistão (veja abaixo alguns relatos).
Brasileira casada com afegão: ‘frustração’
A engenheira Magda Amiri é brasileira e casada com o afegão Ahmad Amiri, e acompanha a situação da família com muita apreensão. O casal mora na cidade do Rio de Janeiro e é tio dos jovens afegãos, com idades entre 18 e 24 anos. Os nomes deles não será revelado para a segurança do grupo. À GloboNews, eles contaram que os quatro sobrinhos conseguiram fugir do Afeganistão em maio deste ano, quando o grupo extremista Talibã começou a tomar o poder naquele país.
Até agosto, os jovens tinham emprego e moradia na Turquia. Mas com a tomada do Talibã de forma definitiva no Afeganistão, eles passaram a sofrer perseguições da polícia e do governo turco, perderam trabalho e precisaram morar na rua à espera da resposta do governo brasileiro sobre o pedido de visto humanitário feito na embaixada de Ancara.
“Primeiro a embaixada (de Ancara) demora a responder o e-mail. Segundo, coloca mais dificuldades. Pediram que nós enviássemos passagens aéreas com a data emitida pra daqui a um mês. Mas eu escrevi um outro e-mail, dizendo que esses meninos estavam desabrigados e desassistidos lá em Ancara, e se eles não podiam diminuir esse prazo. E ai, depois de muito tempo, a resposta foi que a data de emissão do bilhete aéreo seria pra daqui dois meses. Então são dificuldades que a gente não entende. Parece que não está sendo entendida a gravidade e o risco que esses meninos correm”, relatou a engenheira Magda Amiri.
O marido dela, o afegão Ahmad Jawid Amiri, é autônomo e vive no Brasil há sete anos. “Todos os dias estou tão preocupado com esta situação. Não sei o que pode acontecer com eles. Estou pedindo ao governo do Brasil que aceite minha família e eu como humanos. Eles deveriam deixar minha família vir aqui para o Brasil. É só um pedido meu”, disse. “É muito frustrante. Nós já esperávamos, pela experiência que meu marido teve, a gente já sabe a dificuldade que as pessoas vão encontrar quando chegarem em território brasileiro. Mas nós não esperávamos essa dificuldade toda para conseguir um visto humanitário, que era dito ser mais rápido e menos burocrático”, completa Magda Amiri.
Afegão no Brasil tenta trazer mulher e filha
O comerciante afegão Jabir Khan Moslemyar mora no Brasil desde 2014 e tenta trazer a esposa e filha do Afeganistão para o Brasil. Ele também disse que a notícia da concessão de visto humanitário a afegãos trouxe esperança para a família, mas que segue enfrentando inúmeras barreiras para que a esposa consiga protocolar o pedido em um posto diplomático do Brasil.
“Para chegar lá na Embaixada do Brasil é muito difícil, porque está lá em Islamabad. Primeiro, a fronteira está fechada, ninguém consegue chegar lá”. Ele relata que mesmo quem conseguiu chegar ao Paquistão tem sido cobrado pela embaixada brasileira um visto oficial concedido pelo Paquistão, o que ele considera impossível. “Mas aonde a gente arruma esse visto agora? De onde a gente tem que achar o certificado de antecedentes criminais? Não tem governo. É muito difícil. Eles falam: ‘a gente vai dar (o visto humanitário’. Mas, do jeito que eles estão fazendo, é pra não fazer, não”, afirmou.
A esposa de Jabir Khan Moslemyar está doente e sofre de problemas no coração. “Ela não vai conseguir passar aquele monte para chegar ao Paquistão. Nem consegue chegar para medicamento. Ela está muito mal. Eu tentei muito pra falar com eles (representantes do Brasil na embaixada), mas eles falam: ‘você tem que chegar lá, na embaixada do Brasil para (ter o documento) legal (do Paquistão)’. (Documento) legal não tem como, porque não tem governo para tirar o visto”, completou.
Sobre a polêmica
O Ministério das Relações Exteriores informou nesta sexta-feira (31) que as exigências adicionais para a entrada de afegãos no Brasil é dirigida apenas a pedidos formulados por entidades particulares e Organizações Não-Governamentais (ONGs) que patrocinam a vinda de grupos de estrangeiros ao país.
A medida seria uma etapa adicional de segurança, já que, segundo o Ministério das Relações Exteriores, muitos dos pedidos são genéricos e sem dados específicos dos estrangeiros que pedem refúgio.
“Ele é aplicável apenas nos casos de pedido de visto que se dão por iniciativa, intermédio, apoio, Patrocínio, de empresas privadas ou de ONGs quando adicionalmente esse pedido envolve um grande número de pessoas, e ainda, quando não tiver sido possível verificar de pronto que os requisitos que nos preocupar estão sendo cumpridos. É, portanto, um documento aplicável a situações muito muito específicas. Mesmo nesses casos, nesses poucos casos, o protocolo de maneira alguma impede ou atrasa a consideração de qualquer solicitação de visto”, afirmou o embaixador Leonardo Gorgulho, secretário de Comunicação de Cultura do MRE.
Dentre os requisitos estão teste RT-PCR para a detecção de Covid-19 e a comprovação de que a pessoa terá hospedagem, alimentação, transporte e até plano de saúde e odontológico no Brasil, além de aulas de português.
As exigências adicionais foram alvo de críticas da Defensoria Pública da União (DPU), que as considerou ilegais.
Em um pedido de explicações enviado pela Defensoria Pública da União no dia 24 de setembro a Itamaraty, a DPU diz ter recebido informações de que as Embaixadas do Brasil em Teerã, Ancara e Islamabad, preferenciais para a concessão do visto, uma vez que não há representação do Brasil no Afeganistão, passaram a exigir dos afegãos a comprovação de meios para viajar ao Brasil e para se manter no país.
Uma semana depois, na última sexta-feira (31), o Ministério das Relações Exteriores informou que as exigências adicionais para a entrada de afegãos no Brasil eram dirigidas apenas a pedidos formulados por entidades particulares e ONGs que patrocinam a vinda de grupos de estrangeiros ao país. A medida seria uma etapa adicional de segurança, já que, segundo o Ministério das Relações Exteriores, muitos dos pedidos são genéricos e sem dados específicos dos estrangeiros que pedem refúgio.
Mas a apuração da GloboNews mostra que, mesmo para grupos pequenos ou pedidos individuais, algumas exigências continuam sendo feitas, como a exigência de visto oficial no Paquistão como condição prévia para a análise do pedido de visto humanitário concedido ao Brasil pela embaixada em Islamabad, no Paquistão.
“A divulgação de informação de forma displicente, ainda mais em um caso tão sensível quanto à questão de proteção e acolhimento das pessoas vítimas da crise humanitária no Afeganistão, é inadmissível. Porque, conforme o Itamaraty coloca, houve um entendimento, uma falta de compreensão da informação, isso nunca poderia ser tolerado em uma questão tão humanitária como essa. O que mais me preocupa é que quantas famílias deixaram de olhar pro Brasil com a possibilidade de proteção por conta de uma informação não precisa, pouco transparente, fornecida pelo governo federal”, defende a diretora de programas Conectas Direitos Humanos, Camila Asano.
Críticas da DPU
Segundo a DPU, nenhuma das exigências do Itamaraty está prevista na portaria interministerial nº 24, de 3 de setembro, que é assinada pelos ministros das Relações Exteriores, Carlos França, e da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres. Ela prevê apenas quatro exigências para o pedido do visto temporário:
Documento de viagem válido;
Formulário de solicitação de visto preenchido;
Comprovante de meio de transporte de entrada no território brasileiro;
Atestado de antecedentes criminais expedido pelo Afeganistão (caso não seja possível, a portaria exige uma declaração de ausência de antecedentes criminais em qualquer país).
A DPU deu prazo de cinco dias úteis para que o Ministério das Relações Exteriores se manifestasse. A GloboNews apurou que, até o fim do prazo, a manifestação não havia sido feita.
Vistos solicitados e concedidos
O Itamaraty informou que cerca de 400 pedidos de afegãos que querem entrar no Brasil são analisados pelo governo, e que 30 já foram concedidos. Nenhum desses afegãos já está no Brasil, mas alguns já conseguiram deixar o Afeganistão segundo o embaixador Leonardo Gorgulho, secretário de Comunicação de Cultura do Ministério das Relações Exteriores. O MRE, no entanto, não deu detalhes sobre a previsão de chegada dos estrangeiros e o perfil de quem teve o visto humanitário concedido “por questões de segurança”.
A extensão do visto humanitário para afegãos foi antecipada pelo blog da Julia Duailibi. A medida foi articulada pela ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, do Superior Tribunal Militar (STM), para socorrer juízas afegãs (há cerca de 270 no país).
Desde que voltou ao poder, em 15 de agosto, o Talibã está de novo restringido o papel da mulher na sociedade, proibindo-as nas universidades e até de praticar esportes. Também há diversas denúncias de desrespeito aos direitos humanos e até execuções em praças públicas. O Talibã já proibiu músicas em locais públicos e o corte da barba de homens em barbearias.

Fonte: G1 Mundo