Defensoria volta a cobrar o Itamaraty sobre exigências ‘ilegais’ para vistos humanitários a afegãos

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Estrangeiros relatam exigências que dificultam ou inviabilizam concessão de documento. Itamaraty diz que ‘situações são pontuais’ e dirigidas apenas a pedidos para grandes grupos. Afegãos relatam dificuldades para conseguir visto humanitário do Brasil
A Defensoria Pública da União (DPU) voltou a questionar o Ministério das Relações Exteriores sobre exigências que considera ilegais para conceder vistos humanitários a afegãos e afegãs que estão tentando deixar o país para fugir do Talibã. Uma petição havia sido enviada no dia 24 de setembro, endereçada ao chanceler Carlos França, mas não foi respondida no prazo estipulado.
Nesta segunda-feira (4), a Defensoria enviou um novo ofício, cobrando respostas e dando novo prazo, desta vez improrrogável, de 72 horas, para que o Ministério das Relações Exteriores responda à recomendação, de forma integral ou parcial. A GloboNews procurou o Itamaraty, mas até a última atualização desta reportagem não houve resposta sobre o assunto.
A DPU afirma “as informações recolhidas até o momento indicam que o Ministério das Relações Exteriores, por seus postos consulares, não prestou até o momento informações adequadas sobre procedimentos de solicitação de visto para acolhida humanitária para os nacionais do Afeganistão beneficiados com esse direito e, quando o fez, incorreu em manifesta ilegalidade”.
Entre elas estão teste RT-PCR para a detecção de Covid-19 e a comprovação de que a pessoa terá hospedagem, alimentação, transporte e até plano de saúde e odontológico no Brasil e aulas de português, entre outras exigências (veja mais abaixo). Nenhuma delas estão previstas na portaria interministerial nº 24, de 3 de setembro, que é assinada pelos ministros das Relações Exteriores, Carlos França, e da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres. Ela prevê apenas quatro exigências para o pedido do visto temporário:
Documento de viagem válido
Formulário de solicitação de visto preenchido
Comprovante de meio de transporte de entrada no território brasileiro
Atestado de antecedentes criminais expedido pelo Afeganistão (caso não seja possível, a portaria exige uma declaração de ausência de antecedentes criminais em qualquer país)
A concessão de visto humanitário para afegãos foi citada pelo presidente Jair Bolsonaro em seu discurso na 76ª Assembleia Geral da ONU. “O futuro do Afeganistão também nos causa profunda apreensão. Concederemos visto humanitário para cristãos, mulheres, crianças e juízes afegãos”, afirmou o presidente brasileiro no dia 21.
Itamaraty diz que ‘exigências são para casos pontuais’
Na última sexta-feira (31), o Ministério das Relações Exteriores informou que as exigências adicionais para a entrada de afegãos no Brasil eram dirigidas apenas a pedidos formulados por entidades particulares e Organizações Não-Governamentais (ONGs) que patrocinam a vinda de grupos de estrangeiros ao país.
A medida seria uma etapa adicional de segurança, já que, segundo o Ministério das Relações Exteriores, muitos dos pedidos são genéricos e sem dados específicos dos estrangeiros que pedem refúgio.
Mas a apuração da GloboNews mostra que, mesmo para grupos pequenos ou pedidos individuais, algumas exigências continuam sendo feitas, como a solicitação de visto oficial no Paquistão como condição prévia para a análise do pedido de visto humanitário concedido a afegãos pelo Brasil por meio da embaixada em Islamabad, no Paquistão (veja abaixo alguns relatos).
Brasileira casada com afegão: ‘frustração’
Magda Amiri é brasileira e casada com o afegão Ahmad Amiri, e acompanha a situação da família com muita apreensão. O casal mora na cidade do Rio de Janeiro e é tio dos jovens afegãos, com idades entre 18 e 24 anos. Os nomes deles não será revelado para a segurança do grupo.
À GloboNews, eles contaram que os quatro sobrinhos conseguiram fugir do Afeganistão em maio deste ano, quando o grupo extremista Talibã começou a tomar o poder naquele país.
Até agosto, os jovens tinham emprego e moradia na Turquia, mas, com a tomada do Talibã de forma definitiva no Afeganistão, eles passaram a sofrer perseguições da polícia e do governo turco, perderam trabalho e precisaram morar na rua à espera da resposta do governo brasileiro sobre o pedido de visto humanitário feito na embaixada de Ancara.
“Primeiro a embaixada (de Ancara) demora a responder o e-mail. Segundo, coloca mais dificuldades. Pediram que nós enviássemos passagens aéreas com a data emitida pra daqui a um mês. Mas eu escrevi outro e-mail dizendo que esses meninos estavam desabrigados e desassistidos lá em Ancara, e se eles não podiam diminuir esse prazo. E aí, depois de muito tempo, a resposta foi que a data de emissão do bilhete aéreo seria para daqui dois meses. Então são dificuldades que a gente não entende. Parece que não está sendo entendida a gravidade e o risco que esses meninos correm”, relatou a engenheira Magda Amiri.
O marido de Magda está preocupado com esta situação. “Não sei o que pode acontecer com eles. Estou pedindo ao governo do Brasil que aceite minha família e eu como humanos. Eles deveriam deixar minha família vir aqui para o Brasil. É só um pedido meu”, disse.
Para Magda, as dificuldades estão maiores que o esperado. ” Nós não esperávamos essa dificuldade toda para conseguir um visto humanitário, que era dito ser mais rápido e menos burocrático”, lamenta.
Afegão no Brasil tenta trazer mulher e filha
O comerciante afegão Jabir Khan Moslemyar mora no Brasil desde 2014 e tenta trazer a esposa e filha do Afeganistão para o Brasil.
A notícia da concessão de visto humanitário a afegãos trouxe esperança para a família, mas que segue enfrentando inúmeras barreiras para que a esposa consiga protocolar o pedido em um posto diplomático do Brasil. “Para chegar lá na Embaixada do Brasil é muito difícil, porque está lá em Islamabad. Primeiro, a fronteira está fechada, ninguém consegue chegar lá”.
Ele relata que mesmo quem conseguiu chegar ao Paquistão tem sido cobrado pela embaixada brasileira um visto oficial concedido pelo Paquistão, o que ele considera impossível. “Mas aonde a gente arruma esse visto agora? De onde a gente tem que achar o certificado de antecedentes criminais? Não tem governo. É muito difícil. Eles falam: ‘a gente vai dar (o visto humanitário’. Mas, do jeito que eles estão fazendo, é pra não fazer, não”, afirmou.
A esposa de Jabir Khan Moslemyar está doente e sofre de problemas no coração. “Ela não vai conseguir passar aquele monte para chegar ao Paquistão. Nem consegue chegar para medicamento. Ela está muito mal. Eu tentei muito pra falar com eles (representantes do Brasil na embaixada), mas eles falam: ‘você tem que chegar lá, na embaixada do Brasil para (ter o documento) legal (do Paquistão)’. (Documento) legal não tem como, porque não tem governo para tirar o visto”, completou.
Vistos solicitados e concedidos
O Itamaraty informou que cerca de 400 pedidos de afegãos que querem entrar no Brasil são analisados pelo governo, e que 30 já foram concedidos. Nenhum desses afegãos já está no Brasil, mas alguns já conseguiram deixar o Afeganistão, segundo o embaixador Leonardo Gorgulho, secretário de Comunicação de Cultura do Ministério das Relações Exteriores. O MRE, no entanto, não deu detalhes sobre a previsão de chegada dos estrangeiros e o perfil de quem teve o visto humanitário concedido “por questões de segurança”.
A extensão do visto humanitário para afegãos foi antecipada pelo blog da Julia Duailibi. A medida foi articulada pela ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, do Superior Tribunal Militar (STM), para socorrer juízas afegãs (há cerca de 270 no país).
Desde que voltou ao poder, em 15 de agosto, o Talibã está de novo restringido o papel da mulher na sociedade, proibindo-as nas universidades e até de praticar esportes. Também há diversas denúncias de desrespeito aos direitos humanos e até execuções em praças públicas. O Talibã já proibiu músicas em locais públicos e o corte da barba de homens em barbearias.

Fonte: G1 Mundo